POSFÁCIO

Usei um trecho do livro The Righteous Mind, do psicólogo Jonathan Haidt, em que ele narra uma história fictícia de dois gêmeos bivitelinos, um que se tornará de direita, e o outro, de esquerda. O propósito da história é exemplificar os traços de personalidade que, conforme revelou a psicologia, predispõem (mas não predestinam) uma pessoa a ser conservadora ou progressista. Isso quer dizer esquerda e direita em questões sociais (ou seja, em todas as questões políticas, menos as que são estritamente econômicas).

 O primeiro traço de personalidade relevante é a abertura à experiência, característica de quem gosta da novidade pela novidade, é criativo e fora do convencional, e tem curiosidade por discussões abstratas e arte. Pessoas com essas características têm predisposição a serem progressistas. Isso é intuitivo para a gente; o estereótipo do esquerdista é a pessoa que adota um visual pouco convencional (o tilelê) e cuja atividade favorita na vida é “problematizar”, ou seja, pegar uma coisa banal e transformá-la em algo novo e excitante, enxergando problemas que ninguém via antes e dando azo a longas discussões abstratas sobre mudar o status quo.

 Quem menos gostaria dessa atividade são as pessoas com baixo índice de abertura à experiência, que, não por acaso, têm tendência a serem conservadoras em política. Não gostam de discussões “viajadas”, ou de qualquer outra coisa “viajada” que seja. Na arte, por exemplo, preferem pintura realista à abstrata; são aqueles que você vai encontrar dizendo que “a arte morreu” depois de Picasso e que “arte contemporânea não é arte”. (Já reparou que os artistas de qualquer modalidade são quase sempre de esquerda?) Em vez de se vestirem como tilelês, as pessoas de que estamos falando preferem adotar o visual padrão. A palavra “coxinha” desde 2013 tem sido usada no Brasil para designar pessoas à direita do espectro político, mas essa acepção é uma evolução do significado original que a gíria ainda tem em São Paulo: pessoa engomadinha e convencional. Enquanto alguns se enchem de excitação explorando possibilidades radicalmente novas que virariam a sociedade de cabeça para baixo, as pessoas de menor abertura à experiência recuam com apreensão e se agarram à ortodoxia, aos métodos testados e aprovados pela experiência.

 Na nossa história em quadrinhos, é a irmã quem tem índice de abertura à experiência alto, enquanto o irmão tem o índice baixo. A menina tem um forte ímpeto por explorar coisas novas e se sente constantemente tolhida pelo ambiente escolar e suas normas. Ela deve ser fã do filme A Sociedade dos Poetas Mortos. Já o irmão, que não tem a mesma obsessão pela novidade, se sente feliz dentro dos limites pré-estabelecidos.

 O segundo traço de personalidade que se correlaciona com a ideologia é a escrupulosidade, como é chamada a tendência de ser disciplinado e responsável. Pessoas fortes nessa característica têm expectativa de vida mais alta, provavelmente por manterem rédeas apertadas sobre si mesmas e se impedirem de ceder a hábitos tentadores como sedentarismo, fumo ou uso de drogas. Tendem a manter ambientes limpos e organizados, a serem pontuais e, ao invés de procrastinar, completarem tarefas logo para ter a sensação de dever cumprido. Elas não gostam de manter tarefas em aberto, ou, para falar a verdade, de manter qualquer coisa em aberto: elas têm necessidade de closure. Isso é outro modo de dizer que gostam de respostas definitivas, não gostam de incerteza e, por isso, não gostam muito de apreciar ideias alternativas (porque é um fato da cognição que, quanto mais pontos de vista você ouve sobre um assunto, menos confiante vai se sentir na sua resposta).

 Agora me diga: você acha que uma pessoa com esse perfil gostaria de se sentar em círculo no chão de uma sala suja e mal-acabada da Fafich para “problematizar” e “desconstruir”? É só sentir essas palavras para saber que não. Desconstruir: desmontar uma estrutura social que parecia sólida e definitiva. Problematizar: apontar problemas onde antes parecia tudo certinho e resolvido. Quem “problematiza” necessariamente não fornece soluções para os problemas que traz: a atividade consiste justamente em levantar os problemas e deixá-los pairando no ar, como uma fumaça inebriante que estimula o intelecto dos debatedores, cada qual gerando e expondo suas próprias ideias. Bater o martelo numa solução definitiva não é o objetivo; não há closure. Não há possibilidade de satisfação para a pessoa com alto índice no traço da escrupulosidade.

 Pensando nisso, fica mais fácil entender por que os conservadores americanos defendem a autocontenção judicial (quando o juiz se prende à letra da lei), advogando uma interpretação literal da constituição de acordo com o significado imutável que as palavras tinham na época em que foram escritas. Eles têm horror à visão de um grupo de filósofos togados desconsiderando o texto legal para acessar mentalmente um intangível “espírito da lei”. Com esse tipo de procedimento, a interpretação pode ser uma hoje e outra diferente amanhã, sem qualquer previsibilidade, arruinando a tão desejável segurança jurídica. Além do mais, o juiz que atua como legislador está usurpando um papel constitucional, e cumprir o dever é mais importante que atender a conveniências do momento. A gente consegue sentir o traço da escrupulosidade nessas palavras. Até o próprio nome dessa corrente de pensamento, “autocontenção”, é sugestivo.

 Pessoas com índice baixo de escrupulosidade são mais relaxadas em relação a regras, menos pontuais e mais procrastinadoras. Mais do que se sentirem aliviadas ao tomar decisões definitivas, é mais provável que elas se desagradem em não poder manter opções abertas. Flexibilidade antes de resolutividade.

 Visualmente, a baixa escrupulosidade é encarnada no tilelê em sentido estrito (sinônimo de bicho-grilo, em vez do sentido amplo que inclui qualquer pessoa progressista). O visual dele é calculado para sugerir negligência com o cuidado pessoal (o que inclui, por exemplo, a barba e o cabelo grande). Na Faculdade de Direito da UFMG, esse ponto é muito bem exemplificado visualmente pelo contraste entre os espaços físicos das duas representações estudantis, o centro acadêmico e a associação atlética. O primeiro sempre tendeu para a esquerda e a sua sede segue a estética padrão de qualquer centro acadêmico de universidade pública brasileira: móveis velhos, objetos espalhados caoticamente, paredes pintadas de forma amadora e em tons berrantes, abundantes pichações com frases políticas ou filosóficas, e uma infinidade de adesivos políticos de décadas variadas. A Atlética, que é notoriamente mais conservadora, chama a atenção por ter um aspecto gritantemente diferente, com móveis modernos, ar-condicionado, ausência de pichações e paredes pintadas de forma profissional, com palavras grafadas em estêncil.

 A forma mais simples de explicar a relação entre escrupulosidade e conservadorismo é por uma frase do psicólogo Jeffery Mondak: “Indivíduos com altos níveis de escrupulosidade exigem muito de si mesmos, mas também impõem padrões altos aos outros.” Cultivar valores morais conservadores implica exatamente isso.

 A relação entre baixa escrupulosidade e progressismo é ainda mais compreensível. Pessoas com pouca tendência de disciplinarem a si próprias vão ser alvo mais frequente de punição externa e, em consequência, vão ter maior probabilidade de sentir as normas sociais como um fardo pesado. É natural que se rebelem mais contra essas normas adotando uma ideologia mais liberal; é exatamente o que aconteceu com a personagem da história.

 Por último, mas não menos importante, a psicologia descobriu que o conservadorismo tem correlação com um viés da negatividade mais acentuado.

 Viés da negatividade é a tendência que todas as pessoas têm de prestar mais atenção às coisas negativas do ambiente do que às coisas positivas. É uma característica facilmente compreensível pela ótica da seleção natural: quem presta mais atenção aos riscos do ambiente tem maiores chances de sobrevivência.

 Embora todas as pessoas tenham esse viés, vários experimentos diferentes mostraram que os conservadores o têm em grau maior que os progressistas. Quando expostos ao mesmo tempo a uma foto alegre e a uma foto repulsiva, eles passam mais tempo olhando para a foto repulsiva. Quando expostos à foto de uma pessoa com expressão facial ambígua, os conservadores têm mais chance de enxergar uma emoção ameaçadora, como raiva, enquanto os progressistas têm maior chance de enxergar uma emoção não ameaçadora, como surpresa.

O que é que isso tem a ver com ideologia? Tudo. Muitos intelectuais diferenciam esquerda e direita dizendo que a primeira tem uma visão otimista/utópica, acredita na perfectibilidade da humanidade, e acha que “o homem nasce bom e a sociedade o corrompe”. Enquanto isso, a direita tem uma visão pessimista/trágica, acredita que não tem jeito do mundo ser muito melhor do que é hoje (“o melhor é inimigo do bom”) e acha que “o homem nasce mau e a sociedade o civiliza”, sendo a maldade natural do homem um perigo constante a ser prevenido.

Uma boa forma de visualizar a esquerda e a direita é como duas pessoas amarradas por uma corda. Uma está puxando a outra alegremente em direção a um lugar melhor sem nem olhar para trás, aborrecida porque a outra é um peso morto que, além de não ajudar, puxa no sentido oposto. A outra vê a primeira puxá-la em direção ao abismo e resiste ferozmente a sair do lugar. Qual das duas é a psicótica e qual é a lúcida é uma questão que ninguém concorda.

 Uma quer abrandar a punição dos criminosos para salvá-los do sofrimento desnecessário imposto por uma sociedade autoritária, a outra acha que isso é dar sinal verde para pessoas de alta periculosidade e prevê uma explosão na criminalidade e um colapso social.

 Uma quer instituir ações afirmativas para ajudar grupos desprivilegiados e instituir uma sociedade nova e igualitária. A outra se arrepia em pensar no desastre sociológico que resultará de enfatizar a raça e o gênero, acirrando conflitos em vez de minimizá-los, e também acha uma tragédia violar o princípio da igualdade de tratamento, minando um pilar da sociedade e fazendo-a descambar numa guerra por tratamento privilegiado da qual todos sairão pior.

 Uma quer abrir as portas para refugiados sírios para salvá-los da sua penúria. A outra se arrepia ao imaginar milhares de terroristas e estupradores atravessando as fronteiras, além de temer a islamização do país, com a formação de grupos de pressão querendo impor a sharia e o brotamento de guetos muçulmanos criando problemas sociais nas grandes cidades (inclusive ninhos de terroristas).

 Uma quer concentrar poder num grupo revolucionário, porque só assim é que vão ter a capacidade de vencer a resistência dos reacionários para conseguir mudar a sociedade para melhor. A outra se arrepia em pensar como esses revolucionários podem usar o poder depois de tê-lo obtido.

 E por aí vai.

 Uma oportunidade de ouvir o conservadorismo em primeira mão é ESTE VÍDEO com o cientista político João Pereira Coutinho explica por que ele é conservador. “O meu temperamento é um temperamento conservador”, diz ele, e depois fala um tanto de coisas que já foram ditas aqui. (No final do vídeo, ele mostra que tomou contato com pelo menos parte das pesquisas psicológicas que citamos aqui.)

Destaques: “Não tenho nenhum otimismo sobre a natureza humana”; “Antes de quererem governar os outros, têm que se governar elas próprias”; “No meu caso, eu prefiro o familiar àquilo que não é familiar, eu prefiro o tentado àquilo que não é tentado. [...]E tenho essa disposição naturalmente, entende? ‘Por mares nunca dantes navegados’... Eu não quero navegar mar nenhum! Quero que me deixem em paz. Entende? ‘Descobrir’... Aquelas pessoas que querem novas sensações a qualquer minuto... Enfim, eu acho isso quase tudo no mínimo patológico.”
Contraste isso com este professor, que certamente tem um “temperamento progressista”:

"A filosofia radical corre o risco de ser obrigada a aceitar o capitalismo como a melhor ou única forma de organização social que, afinal, é possível entre homens tão maus quanto nós. Sim, sem dúvida a filosofia radical precisa aceitar essa possibilidade e levá-la muito a sério. Mas só depois que o capitalismo tiver sido destruído e os homens que tentaram construir sociedades melhores falharem. Assumir antes disso qualquer compromisso com uma ordem de exclusão e brutalidade tão clara como a que vivemos significa ser não apenas um cínico sem imaginação, mas também um covarde puro e simples."
(Andityas Matos: Filosofia Radical e Utopias da Inapropriabilidade)

Essa passagem representa o ponto em que os intelectuais chegam a um abismo: não sabemos o que vem daqui para frente e é chegada a hora de fazer uma aposta. Ou saltamos para o escuro torcendo para encontrar uma utopia, arriscando tudo; ou ficamos aqui mesmo, porque seria irresponsável correr o risco de perder num segundo o que a civilização levou milhares de anos para construir. Nessa hora cada um consulta seu instinto. Pessoas com o temperamento de João Pereira Coutinho se recusam a pular, preferindo fazer a aposta conservadora (e aqui a gente percebe por que se usa a mesma palavra para denotar um conservador na política e um conservador nos investimentos financeiros). Pessoas com o temperamento de Andityas Matos são diferentes e pulam.

A pergunta que não fizemos até agora é: por que existe essa variação? Uma teoria da psicologia evolutiva é que essa variação existe porque ela é útil para o sucesso do grupo. Faz bem ter algumas pessoas que se adiantam para pegar os frutos de um arbusto enquanto outras ficam para trás, achando que viram a silhueta de um urso atrás da planta. Se todos fossem como os segundos, o grupo perderia muitas oportunidades de se dar bem e sairia no prejuízo. Se todos fossem como os primeiros, bastaria aparecer um urso atrás de um arbusto para acabar com todo o grupo de uma vez só. Do mesmo jeito, é útil para a nossa sociedade ter um grupo que explora novas possibilidades, enquanto mantém um grupo que se ancora na tradição. Até porque é preciso alguém para manter as conquistas obtidas pelos inovadores do passado; sem os conservadores, pode ser que as boas inovações, depois de se tornarem velhas e desinteressantes, acabassem sendo perdidas no afã exploratório daquelas “pessoas que querem novas sensações a qualquer minuto”.

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